Usain Bolt é o velocista mais rápido da história. O jamaicano é o recordista mundial dos 100 e dos 200 metros e a única pessoa a ganhar ambos os eventos em três Olimpíadas. No entanto, enquanto ele se aproxima de seu aniversário de 31 da aposentadoria, os cientistas ainda estão tentando entender completamente como Bolt alcança sua velocidade sem precedentes.
No mês passado, pesquisadores da Universidade Metodista do Sul, nos EUA, que estão entre os principais especialistas na biomecânica da corrida, disseram que encontraram algo inesperado durante um exame de vídeo da passada de Bolt: sua perna direita parece atingir a pista com cerca de 13% mais força máxima do que a esquerda. E com cada passo, a perna esquerda permanece no chão cerca de 14% mais tempo do que a perna direita.
Isso vai contra a sabedoria convencional, com base em uma ciência limitada, que um passo irregular tende a diminuir a velocidade de um corredor.
Assim, a equipe de pesquisa do Laboratório de Desempenho Locomotor da SMU está considerando uma série de perguntas, já que Bolt se prepara para o que ele disse que seria suas últimas performances em uma grande competição internacional – os 100 metros e os 4×100 metros no Campeonato Mundial de Atletismo em Londres, no mês que vem.
A uniformidade do passo é importante para a velocidade? Bolt otimizou essa irregularidade para se tornar o humano mais rápido? Ou, com um passo mais equilibrado durante o seu ápice, ele poderia ter corrido ainda mais rápido que 9,58 segundos nos 100 metros e 19,19 segundos nos 200 metros?
Ajustes naturais
“Essa é a questão de um milhão de dólares”, diz Peter Weyand, diretor do laboratório S.M.U.
O estudo de Bolt, liderado por Andrew Udofa, pesquisador de doutorado, ainda não está completo. E o efeito de passos assimétricos na velocidade ainda não é bem entendido. Mas ao invés de ser prejudicial para Bolt, as consequências de um passo irregular podem de fato ser benéficas, de acordo com Weyand.
Pode ser que Bolt naturalmente tenha estabelecido seu passo para acomodar os efeitos da escoliose. A condição curvou sua espinha à direita e fez sua perna direita pouco mais de 1cm mais curta do que sua esquerda, de acordo com sua autobiografia.
As conclusões iniciais do estudo foram apresentadas no mês passado em uma conferência internacional sobre biomecânica em Colônia, na Alemanha. A maioria dos velocistas de elite tem passos relativamente uniformes, mas não todos. A extensão da variabilidade de Bolt é que parece ser incomum, disse Weyand.
“Nossa ideia de trabalho é que ele provavelmente otimizou sua velocidade, e essa assimetria reflete isso”, explica. “Em outras palavras, corrigir sua assimetria não o aceleraria e talvez pudesse retardá-lo. Se ele fosse correr simetricamente, poderia ser uma marcha não natural para ele”.
Antti Mero, fisiologista da Universidade de Jyvaskyla, na Finlândia, que pesquisou as corridas mais rápidas de Bolt, disse que estava intrigado com os resultados do S.M.U.
“Geralmente há pequenas diferenças entre a perna direita e a perna esquerda, mas acho que elas são normalmente cerca de 1, 2 e 3 por cento. Isso parece um pouco maior”, aponta.
Dada a escoliose e a discrepância no comprimento das pernas de Bolt, Mero diz, o passo do velocista pareceu ótimo para ele. “Se o treinador tentasse mudar o padrão, não seria bom”.
Força de ataque
Homens e mulheres jamaicanos ganharam 11 das 18 medalhas disponíveis nos 100 metros nas últimas três Olimpíadas, embora a ilha do Caribe tenha uma população de apenas 2,8 milhões. As teorias sobre o sucesso jamaicano variam desde sua proporção de fibras musculares de contração rápida até um renomado sistema de desenvolvimento juvenil para uma campanha de saúde pública datada dos anos 1920.
Basicamente, a velocidade é o produto do tempo e da frequência da passada. Embora Bolt tenha 1,96m, ele começa quase tão explosivamente quanto velocistas menores e precisa apenas de 41 passos para cobrir 100 metros, enquanto outros corredores de elite precisam de 43 ou 45 ou mesmo 48 passos.
Nenhum velocista pode acelerar por 100 metros. Mas uma vez que Bolt atinge a velocidade máxima entre 60 a 70 metros, ele mantém sua velocidade de forma mais eficiente do que os outros, desacelerando menos até a linha de chegada. O vencedor de uma corrida não é a pessoa acelerando o mais rápido no final, mas aquela desacelerando mais devagar.
Já foi amplamente assumido que os corredores mais rápidos alcançavam a velocidade máxima balançando as pernas mais rapidamente do que os corredores mais lentos, enquanto reposicionavam seus membros entre a “decolagem” e o “pouso” de cada passo.
Em um estudo de 2000, Weyand, trabalhando com uma equipe em Harvard, determinou que os velocistas de elite não moviam as pernas sensivelmente mais rapidamente pelo ar. Em vez disso, eles ganham velocidade máxima atacando o chão com uma força maior do que outros em relação ao seu peso corporal e por um período de tempo mais curto.
Para os velocistas de calibre olímpico, essa força máxima pode ser igual a cinco vezes o peso corporal, proporcionando elevação e propulsão para começar o próximo passo. No caso de Bolt, sua força máxima pode ultrapassar 450 kg.
30 milissegundos para a glória
A força de impacto máximo é entregue dentro de três centésimos de segundo, ou 30 milésimos de segundo, ao atacar a pista. É um dos momentos mais críticos da corrida. Menos força colocada no chão significa menos força voltando para o ar. Laurence Ryan, um físico no Laboratório S.M.U., chama esse período “30 milissegundos para a glória”. Em outras palavras, Weyand diz: “Você ganha sua medalha ou você está fora da corrida com base nessa curta duração”.
Ao contrário dos maratonistas de elite, que atingem o chão com uma força igual a cerca de três vezes o peso corporal e que devem repetir cada passo cerca de 25.000 vezes ao longo de 42 km, os velocistas não estão preocupados com a resistência e a eficiência de seu combustível em 100 metros.
Os velocistas de elite não atacam passivamente o chão e voltam ao ar como se as pernas deles fossem bastões de pogo. Foi isso que o Laboratório S.M.U. descobriu em dois estudos de 2014. Em vez disso, os velocistas torcem o joelho e elevam o pé na pista com um tornozelo endurecido. Essencialmente, é um soco entregue com alta velocidade e uma parada súbita.
Velocistas como Bolt aterrisam com a planta do pé, que atinge o chão em um ângulo de cerca de seis graus. Sua perna desacelera abruptamente, absorvendo 16 Gs de força. Seu calcanhar cai apenas dois centésimos de segundo – o equivalente a dois centímetros – antes de subir de novo. O tempo total gasto no chão com cada passo é cerca de noventa centésimos de segundo.
Na verdade, há uma maneira biomecânica para os velocistas de classe mundial correrem extremamente rápido. “Eles são parecidos com máquinas”, diz Weyand. “É incrível a medida com que eles fazem a mesma coisa”.
Os pesquisadores do S.M.U. não sabiam que uma das pernas de Bolt era mais longa do que a outra quando começaram seu estudo há seis meses. Eles estavam testando uma nova técnica baseada em movimento, chamada de modelo de duas massas, o que lhes permite determinar as forças terrestres usando o vídeo de alta velocidade de corridas ao invés de esteiras especialmente desenvolvidas no laboratório.
Mecânica da passada
Udofa, pesquisador principal, examinou 20 passos feitos por Bolt e por outros três velocistas de elite de 100 metros, usando o vídeo de uma corrida em Mônaco em 2011.
Em média, Bolt atingiu o chão com 490 kg de força máxima em sua perna direita e 433 kg em sua perna esquerda. Como sua perna direita é mais curta, ele tem uma queda ligeiramente mais longa na pista, contribuindo para uma velocidade maior para esse passo.
“A coisa lógica de pensar é, bem, você quer que ambas as pernas entreguem a maior força possível e, se alguém não estiver entregando muita força, se entregasse mais força, ele iria mais rápido”, disse Weyand. “Mas essa lógica superficial não se concretiza”.
Uma adaptação natural para Bolt foi manter sua perna esquerda no chão por um pouco mais de tempo em cada passo – 97 centésimos de segundo, em comparação com 85 centésimos de segundo para a perna direita. Isso lhe dá um pouco mais de tempo para gerar força com a perna esquerda, disse Weyand, proporcionando maior elevação do chão.
Ralph Mann, pesquisador pioneiro de biomecânica nos Estados Unidos, disse que podia detectar uma espécie de galope no passo irregular de Bolt. Mas uma variabilidade de 13 ou 14% foi surpreendente, já que seu trabalho de consultoria com a equipe de atletismo dos EUA geralmente encontrou uma assimetria entre zero e 7% entre os velocistas de elite.
“Esse é um grande número. Quando você vê que vai encontrar uma anormalidade física”, diz Mann, que ganhou uma medalha de prata nos 400 metros com obstáculosnas Olimpíadas de Munique, em 1972. Mas, quanto a fortalecer a chamada perna mais fraca, ele acrescenta: “Não consigo pensar em que isso não iria melhorar o desempenho”.
Há uma pessoa que, aparentemente, não acha a pesquisa do S.M.U. particularmente interessante: o próprio Bolt, de acordo com seu agente, Ricky Simms, que disse em um e-mail: “Ele não é o tipo de pessoa que estuda esse tipo de coisa”.
Mas Simms, um irlandês que estudou biomecânica na universidade, disse que achou a pesquisa esclarecedora, dada a história de Bolt com lesões nas costas e nas pernas e sua necessidade de terapia regular para se manter saudável. Ele sofreu em suas duas corridas este ano e ainda tenta quebrar a marca dos 10 segundos nos 100m na temporada.
“Espero que os pesquisadores possam obter resultados variados em testes como este, dependendo da corrida que eles estavam analisando e dependendo de que músculo ou articulação particular estava sendo apertado no momento”, diz Simms.
Pouco depois de Bolt se aposentar, os pesquisadores do S.M.U. esperam persuadi-lo a visitar seu laboratório para a realização de testes mais diretos em uma esteira. “As pessoas doam seus corpos à ciência”, disz Udofa, que lidera o estudo. “Ele poderia doar suas forças para a ciência”. [NY Times]
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